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Revista de Poesia, Literatura & Artes, desde Janeiro de 2009.

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano IV Número 46 - Outubro 2012

Poesia - Maria do Rosário Pedreira

Maria do Rosário Pedreira nasceu em Lisboa, em 1959. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas, na variante de Estudos Franceses e Ingleses, pela Universidade Clássica de Lisboa (1981). Possui ainda o curso de Língua e Cultura do Instituto Italiano de Cultura em Portugal. É editora da "Temas e Debates" (grupo Bertelsmann) desde 1998. Como escritora, tem já publicados vários trabalhos de ficção, poesia, ensaio, crônicas e literatura juvenil, procurando neste último gênero a transmissão de valores humanos e culturais. O seu romance Alguns Homens, Duas Mulheres e Eu está construído em torno de uma identidade perdida, onde solidão e feminino são as peças fundamentais. Também o seu livro de poesia A Casa e o Cheiro dos Livros institui a casa como o lugar feminino que acumula esperas, o cheiro dos livros, os restos do amor, os gatos que aí se resguardam da chuva. Para a autora – já distinguida com alguns prêmios literários – a casa pode ser considerada como um mundo onde se encerra tudo aquilo que vai perdurando, mesmo que sob a forma da memória, nostalgicamente...




Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi
talvez para sempre ― a casa e o cheiro dos livros,
a suave respiração do tempo, palavras, a verdade,
camas desfeitas algures pela manhã,
o abrigo de um corpo agitado no seu sono. Guarda-o

serenamente e sem pressa, como eu nunca soube.
E protege-o de todos os invernos ― dos caminhos
de lama e das vozes mais frias. Afaga-lhe
as feridas devagar, com as mãos e os lábios,
para que jamais sangrem. E ouve, de noite,
a sua respiração cálida e ofegante
no compasso dos sonhos, que é onde esconde
os mais escondidos medos e anseios.

Não deixes nunca que se ouça sozinho no que diz
antes de adormecer. E depois aguarda que,
na escuridão do quarto, seja ele a abraçar-te,
ainda que não te tenha revelado uma só vez o que queria.

Acorda mais cedo e demora-te a olhá-lo à luz azul
que os dias trazem à casa quando são tranquilos.
E nada lhe peças de manhã ― as manhãs pertencem-lhe;
deixa-o a regar os vasos na varanda e sai,
atravessa a rua enquanto ainda houver sol. E assim
haverá sempre sol e para sempre o terás,
como para sempre o terei perdido eu, subitamente,
por assim não ter feito.

[in A Casa e o Cheiro dos Livros, 1996]



O meu amor não cabe num poema ― há coisas assim,
que não se rendem à geometria deste mundo;
são como corpos desencontrados da sua arquitectura
os quartos que os gestos não preenchem.

O meu amor é maior que as palavras; e daí inútil
a agitação dos dedos na intimidade do texto ―
a página não ilustra o zelo do farol que agasalha as baías
nem a candura a mão que protege a chama que estremece.

O meu amor não se deixa dizer ― é um formigueiro
que acode aos lábios com a urgência de um beijo
ou a matéria efervescente os segredos; a combustão
laboriosa que evoca, à flor da pele, vestígios
de uma explosão exemplar: a cratera que um corpo,
ao levantar-se, deixa para sempre na vizinhança de outro corpo.

O meu amor anda por dentro do silêncio a formular loucuras
com a nudez do teu nome ― é um fantasma que estrebucha
no dédalo das veias e sangra quando o encerram em metáforas.
Um verso que o vestisse definharia sob a roupa
como o esqueleto de uma palavra morta. nenhum poema
podia ser o chão da sua casa.

[in O Canto do Vento nos Ciprestes, 2001]



Deixei cair o tempo sobre o teu nome,
como se deita o mármore sobre a terra e
a água se derrama sobre as brasas.Vesti-me

de luto como as mulheres que derrubam
os berços vazios de tanto os olharem;e vi
o sangue calar-se finalmente sobre a ferida,
como a cera que endurece na palma da mão

antes de perder-se nos dedos em poeira.Se
te esqueci,foi porque quis alguém que me
chamasse,um corpo que fosse outro no meu
corpo,uma voz oferecida pela manhã.Mas
nada,mas ninguém.Se o tempo não se

tivesse abatido sobre o teu nome,podia ao
menos agora recordar-te - pois não há
laje sem corpo nem cinza que não tenha
ardido.E a casa está hoje mais fria do que

nunca: deixei passar o tempo sobre o teu
nome e não há lareira,não há lar,não há
filhos que se pudessem perder de mim,nem
velas para encher de memória este silêncio.

[in Nenhum Nome Depois, 2004]



Esta manhã o sol atravessou de repente
para o outro lado da rua - são tão sombrias

as casas quando delas se perde o nome de
alguém, tão escuros os corações dos que
ficam lá dentro para habitar a dor.

[in Nenhum Nome Depois, 2004]

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