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Revista de Poesia, Literatura & Artes, desde Janeiro de 2009.

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano IV Número 46 - Outubro 2012

Editorial

O Universo não é uma ideia minha.
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.

Alberto Caeiro

Outubro TUDA, ora pois! É TUDA tuga! Portuguesa, com certeza!

Depois de temporada em terras algarvienses, TUDA volta a Dublin com tudo: muito sentimento - e vinho! - português na bagagem de ser!

Não dá para não pensar no mar estando em Portugal. O português tem uma relação imemorial com o mar... nem tanto com o mar físico, mas com o mar espiritual, o mar psicológico, que invariavelmente acaba remetendo-os a um passado nostálgico, de explorações e conquistas, que sempre começavam pelo mar...

E TUDA vem com tudo e (quase) todos, explorando um pouco esse sentimento em uma seleção de poemas da poeta portuguesa Maria do Rosário Pedreira - uma versão inglesa também - mais a releitura de um poema de Fernando Pessoa, além de ilustrações de artistas portugueses.

Além dos já esperados pindaíbicos - Arnaldo Xavier, Souzalopes, Roniwalter Jatobá, José Geraldo de Barros Martins e este mesmo que vos escreve - TUDA traz muita gente boa, como sempre: confiram na Dívida Interna!

Farol do Cabo de São Vicente

É isso aí, companheiros. Na suja LabUTA do dia-a-dia, que não basta ser dura por natureza, tem ainda as forças superiores da própria, que por vezes desagregam o tempo presente, e levam a memória das batalhas dos homem aos patamares da insignificância. Devolveis à Natureza as cidades intoxicadas, e serão mais amenas as próximas guerras!

QG da TUDA - Outubro

Asyno Eduardo Miranda
o (auto-proclamado) editor
deste porto seguro da jlha do Eire
oje, primeir
º semana do dezº mez
d este Anno Domini de MMXII

Dívida Interna

Noé Sendas - Unrest

Editor
Eduardo Miranda

Capa
José Geraldo de Barros Martins

Digitação
Eduardo Miranda

Revisão
dos autores

Participam desta edição:
Alberto D’Assumpção, Arnaldo Xavier, Carla Andrade, Cesar Cruz, Dorival Fontana, Edson Bueno de Camargo, Eduardo Miranda, Gregório de Matos, Gustavo Lima Fernandes, Hamilton Faria, José de Almada-Negreiros, José de Guimarães, José Geraldo de Barros Martins, José Inácio Vieira de Melo, José Miranda Filho, Maria do Rosário Pedreira`, Maria Helena Vieira da Silva, Marina Alexiou, Nadir Afonso, Noé Sendas, Paulo Cancela de Abreu, Pedro Du Bois, Ronald Augusto, Roniwalter Jatobá, Santiago de Novais, Saulo Silveira, Sofia Barreto, Souzalopes, William Bouguereau e Yuri Rodrigues.

E-mail
tuda.papel.eletronico@gmail.com

Poesia - Arnaldo Xavier

Fetiche e Máscara, José de Guimarães

(...)
29

Revoada
de serpentes
Alvorada de urubus

30

Desalmar espinhos
Desarmar
espíritos

31

Silêncio
deserto
desenha

32

Na noite facho
Se necessário
fl*r

(...)

Poesia - Souzalopes


Manifesto do Partido Comunista
em cordel
Anônimo de Souza

3 – Literatura Socialista e Comunista

1 – O socialismo reacionário


(...)

b) O socialismo pequeno burguês

Não foi só a aristocracia
Que perdeu para burguesia.
Também o pequeno burguês
Perdeu toda garantia:
Pode virar proletário
No espaço de um dia.


Foi assim que a classe média
Fez discurso social.
Foi assim que analisou
A contradição final
Das forças de produção
Daquela era fatal.


Os sábios da economia
Diziam ser coisa pra frente
A exploração do trabalho,
Maquina matando gente,
Camponeses na miséria,
Quantidade de indigentes.


Mas esse socialismo
Ainda não é bastante:
Quer voltar ao passado.
Quer tudo como foi antes.
Não avança um milímetro,
Não dá um passo adiante.

Poesia - Maria do Rosário Pedreira

Maria do Rosário Pedreira nasceu em Lisboa, em 1959. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas, na variante de Estudos Franceses e Ingleses, pela Universidade Clássica de Lisboa (1981). Possui ainda o curso de Língua e Cultura do Instituto Italiano de Cultura em Portugal. É editora da "Temas e Debates" (grupo Bertelsmann) desde 1998. Como escritora, tem já publicados vários trabalhos de ficção, poesia, ensaio, crônicas e literatura juvenil, procurando neste último gênero a transmissão de valores humanos e culturais. O seu romance Alguns Homens, Duas Mulheres e Eu está construído em torno de uma identidade perdida, onde solidão e feminino são as peças fundamentais. Também o seu livro de poesia A Casa e o Cheiro dos Livros institui a casa como o lugar feminino que acumula esperas, o cheiro dos livros, os restos do amor, os gatos que aí se resguardam da chuva. Para a autora – já distinguida com alguns prêmios literários – a casa pode ser considerada como um mundo onde se encerra tudo aquilo que vai perdurando, mesmo que sob a forma da memória, nostalgicamente...




Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi
talvez para sempre ― a casa e o cheiro dos livros,
a suave respiração do tempo, palavras, a verdade,
camas desfeitas algures pela manhã,
o abrigo de um corpo agitado no seu sono. Guarda-o

serenamente e sem pressa, como eu nunca soube.
E protege-o de todos os invernos ― dos caminhos
de lama e das vozes mais frias. Afaga-lhe
as feridas devagar, com as mãos e os lábios,
para que jamais sangrem. E ouve, de noite,
a sua respiração cálida e ofegante
no compasso dos sonhos, que é onde esconde
os mais escondidos medos e anseios.

Não deixes nunca que se ouça sozinho no que diz
antes de adormecer. E depois aguarda que,
na escuridão do quarto, seja ele a abraçar-te,
ainda que não te tenha revelado uma só vez o que queria.

Acorda mais cedo e demora-te a olhá-lo à luz azul
que os dias trazem à casa quando são tranquilos.
E nada lhe peças de manhã ― as manhãs pertencem-lhe;
deixa-o a regar os vasos na varanda e sai,
atravessa a rua enquanto ainda houver sol. E assim
haverá sempre sol e para sempre o terás,
como para sempre o terei perdido eu, subitamente,
por assim não ter feito.

[in A Casa e o Cheiro dos Livros, 1996]



O meu amor não cabe num poema ― há coisas assim,
que não se rendem à geometria deste mundo;
são como corpos desencontrados da sua arquitectura
os quartos que os gestos não preenchem.

O meu amor é maior que as palavras; e daí inútil
a agitação dos dedos na intimidade do texto ―
a página não ilustra o zelo do farol que agasalha as baías
nem a candura a mão que protege a chama que estremece.

O meu amor não se deixa dizer ― é um formigueiro
que acode aos lábios com a urgência de um beijo
ou a matéria efervescente os segredos; a combustão
laboriosa que evoca, à flor da pele, vestígios
de uma explosão exemplar: a cratera que um corpo,
ao levantar-se, deixa para sempre na vizinhança de outro corpo.

O meu amor anda por dentro do silêncio a formular loucuras
com a nudez do teu nome ― é um fantasma que estrebucha
no dédalo das veias e sangra quando o encerram em metáforas.
Um verso que o vestisse definharia sob a roupa
como o esqueleto de uma palavra morta. nenhum poema
podia ser o chão da sua casa.

[in O Canto do Vento nos Ciprestes, 2001]



Deixei cair o tempo sobre o teu nome,
como se deita o mármore sobre a terra e
a água se derrama sobre as brasas.Vesti-me

de luto como as mulheres que derrubam
os berços vazios de tanto os olharem;e vi
o sangue calar-se finalmente sobre a ferida,
como a cera que endurece na palma da mão

antes de perder-se nos dedos em poeira.Se
te esqueci,foi porque quis alguém que me
chamasse,um corpo que fosse outro no meu
corpo,uma voz oferecida pela manhã.Mas
nada,mas ninguém.Se o tempo não se

tivesse abatido sobre o teu nome,podia ao
menos agora recordar-te - pois não há
laje sem corpo nem cinza que não tenha
ardido.E a casa está hoje mais fria do que

nunca: deixei passar o tempo sobre o teu
nome e não há lareira,não há lar,não há
filhos que se pudessem perder de mim,nem
velas para encher de memória este silêncio.

[in Nenhum Nome Depois, 2004]



Esta manhã o sol atravessou de repente
para o outro lado da rua - são tão sombrias

as casas quando delas se perde o nome de
alguém, tão escuros os corações dos que
ficam lá dentro para habitar a dor.

[in Nenhum Nome Depois, 2004]

Poesia - Hamilton Faria

"MovimentoI" 50x70 cm, acrílico s/ tela texturada - Sofia Barreto

0 Auscultador

Eu ausculto as sombras da fumaça
E as jovens enamoradas no escuro
Eu ausculto os corações trovejantes
E a paz que se inaugura nos suspiros
Eu ausculto o que tem a cor do sono
E o que dança nas vidraças
E no vidro perfeito dos diamantes
Eu ausculto o rio encurvado da desordem
E as feições de rotina das cidades virulentas
Eu ausculto o passo apressado dos sonhos
E o sopro espantado dos irrelevantes
E dos meninos a dor sem janelas
E os olhos perdidos sem espanto
E dos homens crescidos eu ausculto
O verde debruçado nos telhados
Contemplando o mundo dos soluços
E a guerra o drama sem contornos
E ainda sei que o mundo gira no crepúsculo
E o rio não para na montanha
E a faísca vem com doce e fúria
Habitando a palavra dos amantes
E libertando o fardo no longínquo
Rio que adormece no oceano

Poesia - Dorival Fontana

L'Allée Urichante, 1955 - Maria Helena Vieira da Silva

O Que Lhe Sobra

Só me resta esta vida,
um resto de poesia,
ópio nas veias,
fantasias etílicas.

Resta uma salva de tiros,
a última despedida,
alguma justificativa,
uma bala na agulha.

Resta o último pedido,
o derradeiro beijo,
indigentes aparências,
sentimentos insípidos.

Restam os meus olhos coloridos,
minhas mãos trêmulas,
uma ilógica existência,
a maldição do tempo.

Resta o espelho, o medo,
eu comigo mesmo...
Resta a busca, o reencontro e o abandono.
Resta o amor, a dor e a solidão.

Restam sempre escolhas
para reconstruir.
Restam escombros e a indecisão.
Resta-me sempre um caminho sem volta.

Poesia - Pedro Du Bois

Arte de Yuri Rodrigues
Envolto

Envolto em luas
distraio fracas luzes
e repasso a cena
em cômodas
e lentas
metades: revolta
                    latejada
                    no tempo
                    despreparado.

O destino
sela luzes
aparentes.

Envolto em luas
desconsidero a farsa:
lado revisto pelo espelho.

[Pedro Du Bois, inédito]

Poesia - Edson Bueno de Camargo

Transformação, 30x30 cm, técnica mista sobre tela, 2009 - Edite Melo
Cascos Negros

o céu se pinta
aquarela medonha

sob este piso que se move
homens trágicos
esperam por sua sentença

este céu é cavalo de cascos negros
cavalga trôpego precipícios
olhos de opala em fogo
todas as cores do arco-íris


:
mas agora
nada se vê
tudo é obscuro véu

Poesia - Marina Alexiou

Femme au Coquillage, William Bouguereau
Imagem enviada pela autora

Escrito nº81

Dons que não foram pedidos se apresentam como presentes
E seduzem com a sua música envolvente, de muitos matizes
Aqueles de alma pura e reluzente....
Incógnitos em terras longínquas e felizes em seu paraíso,
Prometem não escarnecer das lágrimas e dores mundanas.
Não precisam dos acordes, e o seu olhar é de mesma
Origem do purpúreo rosa de céus que não são deste mundo,
Entristecido pelos mudos sons dos passantes aos milhares
Que guardam as guerras e os tronos
Em terras secas, reclusas em eternas limitações.
Os frescos adornos desse mundo de líquidos véus
Escondem tesouros em forma de Graças, livres
De toda a sorte de grilhões.
Que não se admiram por vagas riquezas, pois
Detentoras de um destino feito de serenidade divina
Alegria jovial, e contentamento seguro em suas obrigações.
Perto do áureo alvorecer, da luz da noite coberta de estrelas,
E das tardes plenas de silenciosos mistérios
Para além de qualquer desejo.
Apenas beleza. Somente perfeição. Na natureza que se permite
Conhecer, através das suas pequenas e delicadas dádivas
No caminho daqueles que nada pedem, despidos de temor
E atentos à sua voz....

Poesia - Carla Andrade

O Guardador de Beatas - Pedro Prata
O Motivo do Silêncio

Dendê, a palavra.
É pimenta que anula.
Gravata do sentimento.
Para o amor, envergadura.

A palavra
tem pele dura,
sem âmago.
É entranha de
fagulha.

A palavra é bêbada,
branca de desejo.
Vândala armadura.

Prende em ecos
o ar azul do dialeto,
rouba mãos, grossas veias,
esconde os dentes do afeto.

Invade a semântica do silêncio
a metáfora dos amantes.
Subverte o não nascido,
transverte
o que deve ser
                    polpa.
A palavra endireita
o que é certo torto.
Empobrece da alma o abismo.

Corpos nus
não conjugam verbos na cama.

Poesia - José Inácio Vieira de Melo

Gustavo Lima Fernandes
`
Tia Aurora

A casa de tia Aurora é um lugar
dentro do meu sentimento.
Tem um curral, um imbuzeiro,
dois bois vermelhos
e um vento cheio de azuis.

Eu lembro tanto da casa de tia Aurora.
Eu só não lembro direito da tia Aurora.

Dizem os mais velhos que ela
só saía de casa de manhãzinha
e que, apesar da cara de totem,
ela era mesmo um mantra.

E era só ela abrir a porta
que o sol se espreguiçava,
os passarinhos faziam piruetas
e o dia sorria.

Tia Aurora tinha esse jeito
de começar!

Crônica - Roniwalter Jatobá

Saulo Silveira
A Arte do Assobio

-- Você sabe assobiar?

Confesso que a indagação me pegou de surpresa, quando certo dia participava de um churrasco à moda gaúcha na casa de José Gregório, o mais antigo sondador geológico no Brasil. Ainda mais que, naquele momento de confraternização, ele falava de usinas hidrelétricas, morros de minérios e a vida solitária da profissão.

-- Certamente – respondo meio apressado. – Acho que, em algumas regiões do País, há crianças que aprendem o assobio bem antes da fala.

Mais tarde lembrei-me de um amigo bom de bico, que me recomendou a arte do assobio, inclusive para surtos depressivos em casos de paixão.

-- A minha receita é simples – disse ele à época. -- Assim que a pessoa sentir dentro da alma aquele ligeiro mal-estar, procure em sua memória a trilha musical mais simples de sua vida. Vale até canção de ninar, o que em alguns casos é a mais recomendada. Em qualquer lugar que esteja, comece a assobiar, inicialmente bem baixinho, que é para não incomodar as pessoas mais próximas. Depois, quando descobrir que o ritmo está devidamente integrado com a sua respiração, aumente o som e não se incomode com as resistências à felicidade. Já conheci uma pessoa que ficava possessa de ódio quando estava em um elevador e alguém, em geral um boy, entrava assobiando com a alegria estampada na cara. Um sujeito chato, sem dúvidas.

Aprendi a arte do assobio bem cedo. Tinha doze anos. Um dia, menino ainda, estava sentado num banco de madeira na deserta estação de trem. Depois de passar o final de semana na roça, voltava aos estudos, para a segunda época em matemática, no Ginásio Augusto Galvão, em Campo Formoso. O pai havia me deixado ali, no começo da tarde, junto com a pequena mala com roupa limpa e a caixa com frutas da terra, mangas, graviolas e umbus. Depois, saíra em disparada no cavalo vermelho, porque à noite, em casa, ia acontecer a festa de Reis.

Era um domingo. Janeiro. Na claridade da luz ainda forte, o menino ficou olhando a estrada de ferro já coberta de vegetação rasteira, dormentes carcomidos, e procurou sentir se tinha algum tremor nos trilhos, primeiro sinal da chegada do trem. Atrasado, como sempre.

Em seguida, o menino venceu a timidez e foi até a sala do chefe da estação, a face murcha, o rosto meio escuro desbotado, a farda azul, os cabelos embranquecidos. O homem conferia um papel no telégrafo.

-- Trem só amanhã -- ele disse.

-- O que fazer?, o menino pensou.

Escurecia. O dia terminava com rápidas e escuras sombras. O menino voltou para casa. Eram apenas seis quilômetros, mas nunca tinha feito o caminho com os próprios pés. Ia ou vinha no lombo de animais. Agora, seus passos ficavam pesados na areia da estrada.

Boca da noite. Pela primeira vez, o menino sentiu um grande medo. Pensou em sua mãe, agora preocupada, e no Dia de Reis. Mas logo outro pensamento envolveu a caminhada, como se os espíritos da mata fossem saltar em sua frente ou, de surpresa, atacá-lo pelas costas. O menino tremeu assustado com a escuridão.

De repente, surgiu uma ideia, há tempos ensinada pelo avô.

-- Assobiar, meu filho, espanta o mais tenebroso fantasma.

Os primeiros sons vieram tímidos, sem força, mas pouco a pouco foram ganhando volume e harmonia. Em instantes, ele teve a impressão de que a mata e os bichos calaram. Andou mais depressa. Logo, abria a porteira e ouvia o som de um grupo musical, animando a festa em sua casa.

Pela primeira vez, passou a noite em claro no meio de cantos alegres -- e folia.

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração de José de Geraldo de Barros Martins
A Incrível Estória De Odaire Voltaire

1- Ir

Definitivamente, Odaire Voltaire Itaglianinni Mouzinho não era um pessoa com uma vida comum... nascera em outubro de 1944, durante o bombardeio de Roma... filho do filósofo português Moacyr Mouzinho e da escritora italiana Itala Itaglianinni... seu pai fugira do Portugal salazarista, sua mãe filha de uma condessa russa com um aristocrata genovês, se desiludira da cultura ocidental...

Apesar de uma infância de privações, o nosso protagonista participou como figurante do filme “La Strada” de Frederico Fellini em 1952, onde aparece em uma praça em meio a pessoas que assistiam a um circo de rua... neste dia, durante as filmagens ele fez uma promessa para si mesmo: -”Io diventerò un artista” (*)

Na juventude formou um das primeiros grupos de rock italianos, o “L'effervescente Zucchine” cujo principal sucesso era “Il Tempo È Dalla Mia Parte” uma versão italiana de “Time Is On My Side”... até hoje ele guarda uma foto da banda, e não se cansa de mostrar para seus amigos de bar...

O “L'effervescente Zucchine” fez um enorme sucesso na Itália, seus shows eram sempre espetaculares, desde as apresentações nos ginásios das principais cidades (Roma, Firenze, Milão Turim, etc.) até as pequenas turnês como a da Sicília no verão de 1963 ou a da Costa Amalfitana durante a primavera de 1964.... porém seguindo o caminho oposto ao do grupo de rock brasileiro “Os Incríveis” que estourou na Itália, o “L'effervescente Zucchine” achou que poderia fazer sucesso em Pindorama ...

Ledo engano... a sonoridade da banda era muito avançada... uma espécie de dodecafonismo psicodélico... a turnê foi um fracasso total... talvez se eles tivessem vindo ao Brasil na época da tropicália a estória poderia ser outra... Todos retornaram para o país natal, menos Odaire Voltaire, que familiarizado com a lingua portuguesa (afinal era um Mouzinho), resolveu ficar para ver no que dava...

Largou então a música e passou a se dedicar às artes plásticas, expondo junto com Gershman, Antônio Dias e Maurício Nogueira Lima... participou da exposição de arte “Apocalipopótese” no aterro do Flamengo em 1968, junto com Hélio Oiticica, Lygia Clark, Rogério Duarte, etc... lá conheceu Lúcia Laércia, que no ano seguinte iria tornar-se sua esposa... porém após o casamento rumores e boatos que diziam que ele era um membro das Brigate Rosse, obrigaram nosso protagonista e sua esposa (grávida nesta altura do campeonato) a deixarem Pindorama através da República Oriental (traduzindo: sairem do Brasil através do Uruguai)...

2- Voltar

Uma vez em meados dos anos setenta em um pequeno bar perto da estação de trem de Brindisi, Odaire Voltaire puxou conversa com o famoso cantor Domenico Modugno, e após beber uma longa série de dry-martinis, começou a contar sobre sua vida... disse que vivera no Brasil e que lá havia se casado com uma bella ragazza, mas que havia voltado à Itália onde havia tido uma filha... logo depois se separou... a ex-mulher continuou a morar na Itália, mas nunca o deixou se aproximar da criança...de vez em quando ele ligava fingindo que era engano, só para ouvir a voz da criança no telefone... Domênico Modugno ouviu a estória com lágrimas nos olhos... semanas depois Odaire Voltaire entrou em uma sorveteria perto da Fortezza Vecchia em Livorno e ouviu uma nova canção de Modugno: “Piange il Telefono”... era a sua estória... tempos depois fizerem uma versão brasileira chamada O Telefone Chora” gravada por um cantor chamado Márcio José...

Meses depois do famoso encontro em Brindisi, Lúcia Laércia comecou a enlouquecer e o nosso protagonista conseguiu a guarda da filha, Lauretta Laércia Mouzinho... porém a menina apesar de o ter aceitado como pai (ficara inclusive impressionada em descobrir-se bisneta de uma condessa russa); insistia em ser criada por um figura feminina, sendo que o jeito que o nosso protagonista encontrou para resolver tal questão foi levá-la para passar uma temporada com a tia Elvira (irmã de seu pai) em Sintra...

Em Portugal, Odaire Voltaire participou da agitação decorrente da Revolução dos Cravos, onde conheceu Glauber Rocha que viera para a terrinha, para participar como entrevistador do documentário “As Armas e o Povo” (**), inclusive há nesta película, uma cena no Rocio, onde podemos ver Odaire Volaire em meio a multidão...

3 -Voltar A Ir

Em 1977 ele trouxe sua filha ao Brasil, para conhecer os avós maternos... Em Pindorama voltou a se encontrar com Glauber... desta vez aparece como coadjuvante na entrevista que o General Golbery do Couto e Silva concedeu para quadro do programa “Abertura” que o cineasta baiano fazia na TV Tupy.., Golbery tomando whisky junto a uma parede de tijolo aparente, comentando o golpe de 64...

A partir desta experiência com o cinema, Odaire Voltaire retomou o contato com sua infância, com a precoce participação em “La Strada” de Frederico Fellini... então a estória de nosso protagonista adquire dimensões épicas...

4 – De Volta A Realidade

Seus amigos de bar não se cansam de ouvir seus feitos... muitos sabem que a foto dos “L'effervescente Zucchine” que ele mostra com tanto orgulho é na verdade uma foto dos Rolling Stones no início de carreira, em que os integrantes estão com os rostos meio encobertos pelo ângulo adotado pelo fotógrafo... sabem também que:

- Os aliados libertaram Roma em junho de 1944, por isso não haveria razão para um bombardeio
ter ocorrido quatro meses depois de domínio aliado ;

- Ninguém em sã consciência faria o que Moacyr Mouzinho fez: fugir de Portugal de Salaza para Itália de Mussolini;

- O grupo terrorista de extrema esquerda “Brigate Rosse” (Brigadas Vermelhas) surgiu em 1970, portanto é absurda a estória que um ano após o “Apocalipopótese”, ou seja em 1969, alguém possa acusar Odaire Voltaire de pertencer a um grupo terrorista que nem sequer existia;

- “Piange il Telefono” não foi composta originalmente na língua italiana, na verdade é uma versão
da canção francesa “Le Téléphone Pleure” ( letra de Franck Thomas e música de Jean-Pierre Bourtayre) que por sua vez é baseada (embora com melodia e letra diferentes) na canção country “Telephone Call” (George & Tammy & Tina, Telephone Call;

- O General Golbery do Couto e Silva jamais apareceu no programa “Abertura”... quem apareceu tomando whisky junto a uma parede de tijolo aparente, foi o jornalista e escritor Carlos Castello Branco, e não foi na TV... foi no filme “Terra em Transe”.

Seus amigos sabem, sabem que a lenda é mais divertida do que a realidade, sabem que o que Odaire Voltaire narra, não é sua vida real, mas um sonho, um sonho de pseudo-intelectual urbanóide ... sabem que ele nasceu na verdade foi no bairro paulistano do Cambuci... sabem que sua avó não era condessa russa, mas uma camponesa da Calábria que imigrara para o Brasil... sabem que ele na verdade nunca saiu do estado de São Paulo... Eles sabem, mas deixam Odaire Voltaire contar, contar e contar... suas incríveis estórias... Sem elas a conversa no bar seria um tédio...

(*) “Eu irei me tornar artista”
(**) Filme coletivo realizado e produzido pelo sindicato português “Colectivo de Trabalhadores da Actividade Cinematográfica”.

Conto - José Miranda Filho

Sem Título, acrílico sobre tela 100cm x 70cm, 2011 - Vitor Zapa
Encontro de Amigos - Parte 11

O aniversário de Arlington estendeu-se até a madrugada do dia seguinte. Saímos da festa e fomos direto para o hotel. Deitamo-nos e um sono profundo me dominou durante o resto da madrugada. No dia seguinte levantamo-nos às 11h00min horas e descemos ao restaurante do hotel para fazermos o nosso pequeno almoço, como é chamado o café da manhã na Europa.

Na Irlanda é a moda nativa: alimentos nutritivos e caloríficos: bacon, linguiça, batata assada, tomates e cogumelos fritos, algo que parece gudiguim – espécie de chouriço, um embutido, de origem desconhecida, talvez ligado ao étimo sauricium, torradas, vários tipos de pães, especialmente o pão de soda, uma especialidade irlandesa, uma boa manteiga também irlandesa, e eventualmente um salmão defumado. A manchete principal dos jornais irlandeses trazia uma reportagem sobre o primeiro-ministro do país envolvido num escândalo de corrupção financeira. Fiquei imaginando que aqui, como em qualquer lugar é tudo igual. Não é só no Brasil que essas coisas acontecem. Passei o resto do dia de ressaca. Não almocei. Dormi a tarde inteira. Às vinte e duas horas me levantei e fui a um pub próximo ao hotel tomar uma cerveja, enquanto Eva ficara assistindo na TV um noticiário sobre o Brasil, especificadamente sobre o folclore de São Luiz do Maranhão.

No pub, casualmente encontrei o casal de Cork, aquele que mantém o centro cultural. Ficamos conversando até 1 hora da madrugada. Sua esposa Anne é divertidíssima. Convidei-os a visitarem novamente o Brasil. A princípio acharam a ideia formidável, porém, decidiriam depois.

Não imaginava encontrar gente tão culta e alegre neste lado do mundo. Confesso-me surpreso de tanta simpatia e delicadeza com que fomos tratados por todos os irlandeses, que segundo imaginava, só gostavam de beber o dia todo. Puro engano! Apesar de serem adeptos de uma boa cerveja, e gostarem muito de frequentar bares, existe o outro lado da moeda. São muito cultos, praticam esportes e frequentam assiduamente os centros educacionais, e museus do município. Frequentar um pub na Irlanda faz parte da cultura do povo. Isso é muito comum por aqui. Existe um pub em cada esquina. Há diversos deles para qualquer classe: adolescentes, idosos, heterossexuais. Diversidade de cultura e tolerância são exemplos nesse país.

Estávamos nos dirigindo ao aeroporto quando o meu celular tocou. Era Edward desejando-nos boa viagem. Não pudera nos acompanhar porque havia comparecido a uma audiência na Suprema Corte de Justiça de Cork, sobre um acidente de automóvel (coisa rara) envolvendo um amigo dele, três anos atrás. Agradeci-lhe pela gentileza e seguimos o nosso caminho.

O aeroporto está há apenas três quilômetros do centro de Dublin. Chegamos exatamente às 15 horas (hora local) e o voo para Madri, onde faríamos escala para São Paulo, estava previsto para 00,00 horas. Na hora determinada fizemos o chek-in e embarcamos para Madri no voo 7456 da Ibéria.

Chegamos ao aeroporto de Bajarara, em Madri às 22h00min horas, (hora local). O free shop já estava fechado, por isso não pude comprar meu conhaque preferido “Cardenal Mendonza”. O voo havia se atrasado por trinta minutos.

Às 00h30min finalmente embarcamos no voo 7458 para São Paulo. Adormecemos na viagem, e às 7,00 horas do dia seguinte, depois de quase onze horas desembarcamos no Aeroporto Internacional de Guarulhos, São Paulo.

Dois dias depois de nossa chegada a São Caetano, tivemos notícias de nossos amigos de Dublin. Mandaram-nos um e-mail, notificando-nos que estavam de viagem marcada para Londres, onde iriam participar de uma conferência sobre literatura brasileira.

Durante quinze dias, não tivemos qualquer contato

Foreign Word - Maria do Rosário Pedreira

por Eduardo Miranda

Primeira Dor, óleo sobre tela, 1987 -  Alberto D’Assumpção
I stopped listening you. And I know I am
sadder with your silence.

I would rather think you just fell asleep, but
lean your wrist to my ear
I'll listen nothing but to my pain.

God needed you, I know. And
I do not see how to blame him

or to forgive you.

Deixei de ouvir-te. E sei que sou
mais triste com o teu silêncio.

Preferia pensar que só adormeceste; mas
se encostar ao teu pulso o meu ouvido
não escutarei senão a minha dor.

Deus precisou de ti, bem sei. E
não vejo como censurá-lo

ou perdoar-lhe.

Foreign Word - Gregório de Matos

Gregório de Matos (1636-1695) Bahia, Brazil started using graphic constellation
and free verses as a format for his poems. Colonial anarchism?

Ilustração e legenda enviados pelo autor
Define Your City
Motto
It is made of two ff
From my point of view
One is light finger, and the other fuck
Glosse

1
The Laws were recompiled
And those who did it,
With two ff has it explained
As - done, and well done-
It Caught and Digested
with only two ff it has been exposed
and all who take a view at
in the terms what here the means meet
We have to say that this land
of two ff is made of.

2
Whether of two ff it is made
In our Bahia
Wrong is the orthography
And also at great damage and risk
Something that I want to bet,
And I have a dime do waste,
Is that it will be perverted
Light fingers and fuck
None of the ff has
This city at my sight.

3
I prove my conjecture
As fast as a lightning
Bahia 5 letters has
Which are B A H I A
Soon nobody will say
That two ff it has not,
At least and never even has had
Unless if in name of the good truth
The ff’s of the city are -
One light finger and other fuck.

Define a Sua Cidade

Moto:
É feita de dois ff
Do meu ponto de vista
Um é furtar e o outro foder.

Glossa

1
Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem digesto, e colheito
só com dous ff o expõe,
e assim quem os olhos põe
no trato, que aqui se encerra,
há de dizer que esta terra
de dous ff se compõe.

2
Se de dous ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia,
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta
e quero um tostão perder,
que isso a há de perverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
esta cidade ao meu ver.

3
Provo a conjetura já,
prontamente como um brinco:
Bahia tem letras cinco
que são B-A-H-I-A:
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder

Releitura - Fernando Pessoa

Áurea purpúrea - Nadir Afonso

Mar Português

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.

Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Ilustração - Nadir Afonso

Nadir Afonso nasceu em Chaves em 1920. Diplomou-se em Arquitetura na Escola Superior de Belas-Artes do Porto. Em 1946, estuda pintura na École des Beaux-Arts em Paris, e obtém por intermédio de Portinari uma bolsa de estudo do governo francês. Colabora com o trabalho do arquiteto Le Corbusier e serviu-se algum tempo do atelier Fernand Léger. De 1952 a 1954 trabalha no Brasil com o arquiteto Oscar Niemeyer. Nesse ano, regressa a Paris, retoma contato com os artistas orientados na procura da arte cinética, desenvolvendo os estudos sobre pintura que denomina "Espacillimité". Na vanguarda da arte mundial expõe em 1958 no Salon des Réalités Nouvelles "espacillimités". Em 1965, Nadir Afonso abandona definitivamente a arquitetura; consciente da sua inadaptação social, refugia-se pouco a pouco num grande isolamento e acentua o rumo da sua vida exclusivamente dedicado à criação da sua obra.


Sevilla, por Nadir Afonso, acrílico sobre canvas, 176x235 cm.

Ilustração - José de Almada-Negreiros

José Sobral de Almada Negreiros GOSE (Trindade, 7 de Abril de 1893 — Lisboa, 15 de Junho de 1970) foi um artista multidisciplinar português; dedicou-se fundamentalmente às artes plásticas (desenho, pintura, etc.) e à escrita (romance, poesia, ensaio, dramaturgia). Ocupa uma posição central na primeira geração de modernistas portugueses


Domingo Lisboeta - José de Almada-Negreiros

Vídeo - Paulo Cancela de Abreu

Conde Ferreira
(1:00 min)

In a mental institution a man flies forever. Shot in the psychiatric hospital "Conde Ferreira" in OPorto. By Paulo Cancela de Abreu